sexta-feira, maio 26, 2006

CRÔNICA - OS OLHOS E O SORRISO

Trazia um sorriso indefectível, quase sempre acompanhado de um olhar a esmo, perdido, sem nexo ou horizonte.

Quase não falava e não mexia com ninguém, mas o simples fato de olhar “daquele jeito” assustava as pessoas.

Menino criado solto pelas vielas sem calçamento do pequeno distrito de Alegre, no Espírito Santo, comia às vezes, quando lhe dessem alguma coisa, qualquer coisa.

Muitas vezes o prato de comida era acompanhado por impropérios, outras vezes a negativa era acompanhada por pedradas, copos de água fervendo e outras coisas mais.

O menino foi crescendo assim, dormindo com os bois nos estábulos ou num canto qualquer a esmo.

Nos tempos de frio, e olhe que aquele lugar era frio, muitas vezes os seus pedidos por comida ou água eram respondidos com jarros de água fria, o que foi lhe dando uma resistência espantosa.

Agüentava bem o frio, passava os invernos mais recolhido, qual fosse um bicho meio que hibernando meio que vivendo.

Os dentes perdidos na falta de assistência e pelas pedradas disparadas pelos meninos do distrito, foram deixando vazios naquele sorriso que davam mais e mais a impressão de debilidade mental, mas de uma enigmática e tenebrosa face que associava esse sorriso com o olhar, olhar para nunca, para ontem.

Como em todo lugar pequeno, tínhamos ali também, os gaiatos de sempre. E a brincadeira predileta que o ócio criava era a de deixar um aos outros, embriagados.

Com ele não podia ser diferente, o álcool era gostoso, a embriaguez mais ainda, e a anestesia fazia bem ao nosso rapaz.

Embriagado, as coisas pioravam de vez.

As poucas “boas almas” do vilarejo viraram-lhe a cara, numa sucessão de impropérios e negativas que foi definhando o rapaz.

Mas o sorriso permanecia, os olhos de sempre, a vida passando, de mal a pior.

A fome voraz fez com que começasse a se adaptar a um cardápio mais variado e simples.

Começava a comer frutas e legumes, muitas vezes verdes, arrancados do pé e devorado sem tempero, sem cozimento, crus.

Quando foi visto comendo jiló cru, uma mulher teve pena e, pouco a pouco foram uma ou outra, enchendo novamente a latinha enferrujada com os restos das refeições. Os porcos nem repararam na partilha.

Pois bem, no meio dos velhacos do local havia um que ultrapassava os limites.

Ao perceber que nosso amigo repetia o que era-lhe dito, sem capacidade de analisar, ensinou-lhe os palavrões de sempre.

Até aí tudo bem, meio as risotas abafadas das “donzelas” e o praguejar das velhas beatas, tudo ia transcorrendo como de sempre.

Um dos filhos da burguesia local, e burguesia nesses casos não passa de um sitiante melhor ou, na maioria das vezes, demonstrando melhor condição econômica, mesmo que à custa de engodos e trambiques vários, não nutria muitas simpatias pelo rapaz.

O motivo foi que, um dia o ingênuo, sem querer esbarrou na roupa nova do burguesinho e, como as mãos não eram religiosamente lavadas, manchou um pouco a blusa.

Havia uma menina muito bonita e, mais que bonita, uma verdadeira patricinha, dessas que soem ocorrer nestes lugarejos.

Ao saber que o mendigo havia assobiado para ela, revoltou-se.

E, na sua revolta foi tirar satisfação com o pobre, cuja única reação foi o sorriso sem dentes e o olhar perdido.

O aristocratazinho interpretou aquilo como se fosse uma ofensa ou um tipo de deboche.

Passaram-se alguns dias e corria a notícia de boca em boca.

Acharam o corpo do rapaz, numa clareira dentro da mata, num sitio abandonado perto do centro do distrito.

As marcas de sevícia eram assustadoras, o pênis cortado, a língua arrancada, as vísceras expostas, uma crueldade ímpar.

Somente os olhos e o sorriso, como a perdoar as mãos assassinas restavam, pairando sobre o distrito...