sábado, setembro 15, 2007

DICIONÁRIO FILOSÓFICO VOLTAIRE I - L

ÍDOLO, IDÓLATRA, IDOLATRIA

Idolo vem do grego [grego], figura; [grego], representação de uma figura; [grego], servir, reverenciar, adorar, O termo adorar é latino, existindo várias acepções diferentes: significa levar a mão à boca falando com respeito, curvar-se, ajoelhar-se, saudar e, enfim, comumente, render um culto supremo.
É útil assinalar aqui que o Dictionnaire de Trévoux começa esse artigo por dizer que todos os pagãos eram idólatras e que os hindus ainda o são. Primeiramente, não se chamava pagão a ninguém antes de Teodósio o Jovem; esse nome foi dado então aos habitantes dos burgos da Itália, pagorum incolae, pagani, que conservavam sua antiga religião. Em segundo lugar, o Indostão é maometano e os maometanos são inimigos implacáveis das imagens e da idolatria. Terceiro, não se deve chamar idólatras a muitos povos da Índia que pertencem à antiga religião dos parsis, nem a certas castas que não adoram ídolos.

Exame

Se houve alguma vez um governo idólatra
Parece não ter existido jamais nenhum povo sobre a terra que tenha tomado esse nome de idólatra. Esse termo é uma injúria, uma palavra ultrajante, tal como a de gavachos (33), que os espanhóis davam outrora aos franceses, e o de maranes (34) que os franceses davam aos espanhóis. Se se tivesse perguntado ao senado de Roma, ao Areópago de Atenas, à corte dos reis da Pérsia: “Sois idólatras!” – mal entenderiam a pergunta. Ninguém teria respondido: “Adoramos imagens e ídolos”. Não se encontra o termo idólatra, idolatria nem em Homero, nem em Esíodo, nem em Heródoto, nem em qualquer outro autor da religião dos gentios. Jamais existiu édito, lei alguma que ordenasse a adoração de ídolos, que fossem usados como deuses, que se considerassem como deuses.
Quando os capitães romanos e cartagineses concluíam um tratado, invocavam todos os seus deuses. “É na sua presença” – diziam eles – “que juramos a paz”. Ora, as estátuas de todos esses deuses, cuja enumeração seria muito longa, não participavam da tenda dos generais. Consideravam os deuses como presentes às ações dos homens, como testemunhas, como juizes e com certeza não era o simulacro que constituía a divindade.
Com que olhos viam, pois, as estátuas das suas falsas divindades nos templos? Com os mesmos olhos, se se permitir esta expressão, com que vemos as imagens dos objetos de nossa veneração. O erro não era adorar pedaços de mármore ou de madeira, mas adorar uma falsa divindade, representada por essa madeira e por esse mármore. A diferença entre eles e nós não é que eles tivessem imagens e nós não. A diferença é que suas imagens representavam seres fantásticos de uma religião falsa e as nossas representam seres reais duma religião verdadeira. Os gregos tinham a estátua de Hércules e nós a de S. Cristóvão; tinham Esculápio e sua cabra e nós S. Roque e seu cão; tinham Júpiter armado com um feixe de raios e nós Sto. Antônio de Pádua e São Jaques de Compostela.
Quando o cônsul Plínio endereça suas preces aos deuses imortais, no exórdio do Panegírico de Trajano, não é às imagens que se dirige. Essas imagens não eram imortais.
Nem os últimos tempos do paganismo nem os mais remotos oferecem um único fato que possa fazer concluir que se adorassem ídolos. Homero fala apenas de deuses que habitavam o alto Olimpo. O palladium, ainda que caído do céu, era apenas um penhor sagrado da proteção de Palas; era a ela que se venerava no palladium.
Porém os romanos e os gregos ajoelhavam-se diante das estátuas, davam-lhes coroas, incenso, flores, conduziam-nas em triunfo nas praças públicas. Nós santificamos esses costumes, e não somos idólatras.
As mulheres, em tempos de seca, carregavam as estátuas dos deuses depois de haver jejuado. Caminhavam descalças, descabeladas, e em breve chovia a cântaros, como dizia Petrônio, et estatim urceatim pluebat(35). Não consagramos esse uso, ilegítimo entre os gentios e legítimo sem dúvida alguma entre nós? Em quantas cidades não se levam a pés nus os altares dos santos para obter as bênçãos do céu por seu intermédio? Se um turco, um letrado chinês presenciasse essas cerimônias, poderia, por ignorância, acusar-nos desde logo de pôr nossa confiança em imagens que assim transportamos em procissão; bastaria, porém, uma palavra para os desmentir.
Surpreendemo-nos do número prodigioso de declamações debitadas em todos os tempos contra a idolatria dos romanos e dos gregos; e mais ainda, nos surpreendemos ao saber que não foram idólatras.
Existiam templos mais privilegiados que outros. A grande Diana de Éfeso tinha mais reputação do que uma Diana de aldeia. Operavam-se mais milagres no templo de Esculápio em Epidauro que em outro qualquer dos seus templos. A estátua de Júpiter Olímpico atraía mais oferendas que a de Júpiter Paflagônio. Mas, desde que é preciso sempre opor aos costumes de uma religião verdadeira os de uma religião falsa, não tivemos nós, durante vários séculos, mais devoção a certos altares do que a outros? Não levamos mais ofertórios a Nossa Senhora de Loreto que a Nossa Senhora das Neves? É a nós que compete saber se esse pretexto serve para nos acusar de idolatria.
Não se imaginara senão uma só Diana, um só Apolo, um único Esculápio, e não tantos Apolos, Dianas e Esculápios, com seus respectivos templos e estátuas. Está pois provado, tanto quanto o pode ser um ponto histórico, que os antigos não criam em que uma estátua fosse uma divindade, que o culto não podia ser relacionado a essa estátua, a esse ídolo e que, consequentemente, os antigos nada tinham de idólatras.
Um populacho grosseiro, supersticioso, que não raciocinava, que não sabia duvidar nem negar nem crer, que acorria aos templos por ociosidade e porque aí os pequenos são iguais aos grandes, que levava sua oferenda por costume, que falava continuamente de milagres sem nunca haver examinado um deles, e que não estava acima das vítimas que causava; esse populacho, digo, bem podia, à vista da grande Diana e de Júpiter Tonante, ser ferido de um terror religioso e adorar, sem o saber, a própria estátua. É o que em nossos templos aconteceu algumas vezes a nossos grosseiros concidadãos. Entretanto, não cessamos de lhes dizer que é aos bem-aventurados, aos imortais, recebidos no céu, que eles devem solicitar, e não a figuras de madeira e de pedra, e que apenas devem adorar a Deus.
Os gregos e romanos aumentaram por apoteoses o número de seus deuses. Os gregos divinizavam os conquistadores, como Baco, Hércules e Perseu. Roma erigiu altares aos seus imperadores. Nossas apoteoses são de gênero diferente; temos santos em substituição a seus semideuses, seus deuses secundários; mas não os consideramos mercê de seus postos ou conquistas. Elevamos templos a homens simplesmente virtuosos que seriam, na maioria, completamente ignorados sobre a terra se não tivessem sido colocados no céu. As apoteoses dos antigos inspiravam-se na lisonja, as nossas no respeito à virtude, mas essas antigas apoteoses constituem ainda uma prova convincente de que os gregos e romanos nada tinham propriamente de idólatras. Está claro que não admitiam mais uma virtude divina na estátua de Augusto e Cláudio do que em suas medalhas.
Cícero, em suas obras filosóficas, não deixa sequer supor que nos possamos enganar quanto às estátuas dos deuses, confundindo-as com os próprios deuses. Seus interlocutores fulminavam a religião estabelecida; mas nenhum deles sonha em acusar os romanos de empregar o mármore e o bronze para as estátuas de suas divindades. Lucrécio não reprova essa tolice a ninguém, ele que tudo reprova aos supersticiosos. Portanto, ainda uma vez, essa opinião não existia, não se fazia dela idéia alguma; não existiam idólatras.
Horácio faz falar a uma estátua de Príapo, fazendo-lhe dizer: “Eu fui outrora um tronco de figueira; um carpinteiro, não sabendo se faria de mim um Deus ou um banco, determinou enfim tornar-me um deus, etc.” (36). Que concluir desse gracejo? Príapo era dessas pequenas divindades subalternas abandonadas ao gracejo; esse próprio gracejo é a prova mais evidente de que essa figura de Príapo, que se colocava nas hortas para espantar os pássaros, não era muito venerada.
Dacier, entregando-se ao espírito comentador, não deixou de observar que Baruch predissera essa aventura dizendo: “Eles serão apenas o que quiserem os artífices”; porém ele deveria observar também que se pode dizer outro tanto de todas as divindades.
Pode-se, de um bloco de mármore, fazer tão bem um fogão como uma figura de Alexandre ou de Júpiter, ou qualquer outra coisa mais respeitável. A matéria de que eram formados os querubins do Santo dos Santos teria podido servir igualmente às funções mais vis. Um trono, um altar, são menos venerados porque um operário poderia ter feito com seu material uma mesa de cozinha?
Dacier, em lugar de concluir que os romanos adoravam a estátua de Príapo e que Baruch o predissera, deveria pois concluir que os romanos se riam dela. Consultai todos os autores que falam das estátuas dos seus deuses e não encontrareis nenhum que fale em idolatria: eles dizem expressamente o contrário. Vedes em Marcial:

Qui finxit sacros auro vel marmore vultus non facit ille deos.... (37).

Em Ovídio:

Colitur pro Jove forma Jovis (38).

Em Estácio:

Nulla autem effigies, nulli commissa metallo forma Dei; mentes habitare et pectora gaudet (39).

Em Lucano:

Estne Dei sedes, nisi terra et pontus et aer? (40).

Far-se-ia um volume de todos os passos que afirmam que as imagens são somente imagens.
Apenas o caso em que as estátuas concediam oráculos pode fazer pensar que essas estátuas tinham alguma coisa de divino. Mas certamente a opinião reinante era a de que os deuses tinham escolhido determinados altares, determinadas imagens, para aí descerem algumas vezes, para aí dar audiências aos homens, para lhes responder. Não vemos em Homero e nos coros das tragédias gregas senão preces a Apolo, que dava seus oráculos nas montanhas, em tal templo, em tal cidade; não há, sem dúvida, em toda a antigüidade, o menor vestígio de preces dirigidas a uma estátua.
Os que professavam a magia, os que a julgavam uma ciência ou que fingiam crê-lo, pretendiam ter o segredo de fazer os deuses descerem às estátuas; não os grandes deuses, mas os deuses secundários, os gênios. É o que Mercúrio Trismegista chamava fazer deuses; é isso que Sto. Agostinho refuta em sua Cidade de Deus. Porém mesmo isso mostra evidentemente que as imagens nada tinham de divino, porquanto era preciso que um mago as animasse. Parece-me que era muito raro um mago ter habilidade suficiente para dar alma a uma estátua, para fazê-la falar.
Numa palavra: as imagens dos deuses não eram deuses. Júpiter e não sua imagem lançava o trovão; e não era a estátua de Netuno que agitava os mares nem a de Apolo que fazia a luz. Os gregos e os romanos eram gentios, politeístas e não idólatras.
Se os persas, os sabaenses, os egípcios, os tártaros, Os turcos foram idólatras e de que antigüidade é a origem das imagens chamadas “ídolos”. História do seu culto.
É um grande erro chamar idólatras aos povos que renderam culto ao Sol e às estrelas. Essas nações não tiveram por muito tempo nem imagens nem templos. Se se enganaram, foi em atribuir aos astros o que deviam ao criador dos astros. O dogma de Zoroastro ou Zerdusto, recolhido no Sadder, apresenta também um ente supremo, vingador e remunerador; e isto está bem longe de ser idolatria. O governo da China não teve jamais nenhum ídolo;, conservou sempre o culto simples do Senhor dos Céus, King-tien. Gengis Cã, entre os tártaros, não era idólatra nem possuía imagem alguma. Os muçulmanos, que inçaram a Grécia, Ásia Menor, Síria, Pérsia, Índia e África, chamam aos cristãos idólatras, infiéis, pois acreditam que eles rendem culto às imagens. Quebraram várias estátuas que encontraram em Constantinopla, em Santa Sofia, na igreja dos Santos Apóstolos e em muitas outras que converteram em mesquitas. A aparência os enganou como sempre engana os homens e lhes fez crer que templos dedicados aos santos que tinham sido homens outrora, imagens desses santos veneradas de joelhos, milagres operados nesses templos eram provas irretorquíveis da mais consumada idolatria. Contudo, não há nada disso. Os cristãos não adoram, na verdade, senão um Deus único e não veneram nos seus bem-aventurados senão a própria virtude de Deus que age em seus santos. Os iconoclastas e os protestantes lançaram a mesma tacha de idolatria à igreja e a mesma resposta lhes foi dada.
Como muito raramente tiveram os homens idéias precisas e menos ainda exprimiram suas idéias por termos precisos e inequívocos, apelidamos idólatras os gentios e sobretudo os politeístas. Escreveram-se volumes imensos, debitaram-se sentimentos diversos sobre a origem desse culto rendido a Deus ou a vários deuses sob figuras sensíveis: esta multitude de livros e de opiniões não atesta senão ignorância.
Não se sabe quem inventou as vestes e os calçados e quer-se saber quem primeiro inventou os ídolos? Que importa um trecho de Sanconiáton, que viveu antes da guerra de Tróia? Que nos ensina ele quando diz que o caos, o espírito, isto é, o sopro, enamorado de seus princípios, lançou-lhes os alicerces, que tornou o ar luminoso, que o vento Colpo e sua mulher Bau geraram Éon, que Éon gerou Genos, que Cronos, seu descendente, tinha dois olhos atrás como na frente, que se tornou Deus e que presenteou o Egito a seu filho Tot? Aí tendes um dos mais respeitáveis monumentos da antigüidade.
Orfeu, anterior a Sanconiáton, nada nos poderá dizer de novo em sua Teogonia, que Damácio nos transmitiu. Apresenta o princípio do mundo sob a figura de um dragão de duas cabeças, uma de touro, outra de leão, um rosto à metade, a que chama rosto-deus, e asas douradas nas costas.
Podeis, porém, dessas estranhas idéias, tirar duas grandes verdades: uma, que as imagens sensíveis e os hieróglifos são da mais alta antigüidade; outra, que todos os filósofos antigos reconheceram um primeiro princípio.
Quanto ao politeísmo, o bom senso vos dirá que, desde que existiram homens, isto é, frágeis animais capazes de razão e de loucura, sujeitos a todos os acidentes, à doença e à morte, esses homens sentiram sua fraqueza e sua dependência; reconheceram facilmente a existência de alguma coisa mais poderosa que eles; sentiram uma força na terra que fornece seus alimentos, uma no ar que os destrói com freqüência, uma no fogo que consome e na água que submerge. Que mais natural, em homens ignorantes, que o imaginar seres que presidissem a esses elementos? Que mais natural que venerar a força invisível que fazia luzir diante dos olhos o Sol e as estrelas? E, desde que se desejou formar uma idéia dessas forças superiores ao homem, que mais natural ainda que o figurá-las de uma maneira sensível? Poderia ser de outra forma? A religião judaica, que precedeu à nossa e que foi dada por Deus, estava repleta dessas imagens sob as quais se representa Deus. Ele se digna falar num espinheiro a linguagem humana; aparece sobre uma montanha; os espíritos celestes que envia vêem todos sob forma humana; enfim o santuário está repleto de querubins, que são corpos de homens com asas e cabeças de animais. É o que deu lugar ao erro de Plutarco, Tácito e tantos outros que reprovaram aos judeus o adorar uma cabeça de asno. Deus, apesar de sua proibição de se pintarem e esculpir figuras, dignou-se pois proporcionar-se à fraqueza humana, que solicitava que se lhe falasse aos sentidos por meio de imagens.
Isaías, no cap. 6, vê o Senhor sentado sobre um tronco e a cauda de seu vestido que enchia o templo. O Senhor estende sua mão e toca a boca de Jeremias, no capítulo 1 desse profeta. Ezequiel, no capítulo 3, vê um trono de safira, e Deus lhe aparece como um homem sentado em seu trono. Essas imagens não alteram em nada a pureza da religião, que jamais empregou quadros, estátuas, ídolos, para representar Deus aos olhos do povo.
Os letrados chineses, os parsis, os antigos egípcios não tiveram ídolos; mas em breve Isis e Osiris foram figurados; em breve Bel, em Babilônia, foi um grande colosso; Brama foi um estranho monstro na península da Índia. Os gregos principalmente multiplicaram os nomes dos deuses, as estátuas e os templos, mas sempre atribuindo a suprema potência a seu deus Zeus, chamado pelos latinos Júpiter, senhor dos deuses e dos homens. Os romanos imitaram os gregos. Esses povos colocaram sempre todos os deuses no céu, sem saber que é que entendiam pelo céu e pelo seu Olimpo; não havia o mínimo indício de que esses deuses habitassem nas nuvens, que apenas são água. Colocaram-se, primeiro, sete deuses em sete planetas; porém ao depois a morada de todos os deuses foi a amplidão celeste.
Os romanos tiveram seus doze grandes deuses, seis varões e seis fêmeas, a que chamaram Dii majorum gentium: Júpiter, Netuno, Apolo, Vulcano, Marte, Mercúrio; Juno, Vesta, Minerva, Ceres, Vênus, Diana. Plutão foi então esquecido; Vesta tomou seu lugar.
Em seguida vinham os deuses minorum gentium, os deuses indígetes, os heróicos, como Baco, Hércules, Esculápio; os deuses infernais, Plutão, Prosérpina; os do mar, como Tetis, Anfitrite, as Nereidas, Glauco; depois as Dríadas, as Náiadas; os deuses dos jardins, dos pastores. Havia-os para cada profissão, para cada ação da vida, para as crianças, para as jovens casadouras, para as casadas, para as amantes; houve o deus Pete. Divinizaram-se por fim os imperadores. Nem esses imperadores, nem o deus Pete, nem a deusa Pertunda, nem Príapo, nem Rumília, a deusa das tetas, nem Estercútio, o deus do guarda-roupa, foram na verdade considerados como senhores do céu e da terra. Os imperadores tiveram templos algumas vezes, os pequenos deuses domésticos não os tiveram; mas todos tiveram sua figura, seu ídolo.
Tratava-se de pequenos bonecos com os quais se ornavam os gabinetes; brinquedos para velhas e crianças, que não estavam autorizados por nenhum culto público. Deixava-se que cada particular tivesse as superstições que melhor lhe agradassem. Encontram-se ainda esses pequenos ídolos nas ruínas das cidades antigas.
Se ninguém sabe quando os ídolos começaram a ser fabricados, sabe-se em compensação que remontam à mais alta antigüidade. Tareu, pai de Abraão, construiu Ur, na Caldéia. Raquel roubou e carregou os ídolos de seu avô Labão. Não é possível ir mais longe.
Mas que noção precisa tinham as nações antigas a respeito desses simulacros? Que virtude, que potência lhes atribulam? Julgava-se que os deuses desciam do céu para se meterem nessas estátuas, ou que lhes comunicavam uma parte do espírito divino, ou que não lhes comunicavam coisa alguma? É este também um assunto sobre o qual se tem escrito inutilmente; é claro que cada homem julgava segundo a sua parcela de razão, ou de credulidade, ou de fanatismo. É evidente que os padres ligaram as divindades o mais que puderam às suas estátuas, a fim de conseguirem maior número de oferendas. Sabe-se que os filósofos reprovavam essas superstições, que os guerreiros as escarneciam, que os magistrados as toleravam e que o povo, sempre absurdo, não sabia que fazer com elas. É esta em poucas palavras a história de todas as nações a quem Deus não se fez conhecer.
Pode-se fazer a mesma idéia do culto que todo o Egito rendia a um boi e que várias cidades renderam a um cão, a um símio, a um gato, a cebolas. Há muita aparência de que de começo tenham servido como emblemas. Em seguida um certo boi Apis, um certo cão chamado Anubis, foram adorados; comia-se diariamente carne de boi e cebolas; é porém muito difícil saber que pensavam as velhas do Egito a respeito dos bois e das cebolas sagradas.
Os ídolos falavam com freqüência. Comemoravam-se em Roma, no dia da festa de Cibele, belas palavras que a estátua pronunciara ao ser transladada do palácio do rei Atálio.

Ipsa peti volui; ne sit mora, mitte volentem:
dignus Roma locus quo deus omnis eat (41).

Eu quis que me levassem, levai-me depressa; Roma é digna de que todos os deuses se estabeleçam nela.
A estátua da Fortuna falara: os Cipiões, os Cíceros; os Césares, na: verdade, não acreditavam; mas a velha a quem Encolpo deu um escudo a fim de que comprasse gansos e deuses bem poderia acreditá-lo.
Os ídolos também concediam oráculos, e os sacerdotes metidos no oco das estátuas falavam em nome da Divindade.
Como, no meio de tantos deuses e de tantas teogonias diferentes e de cultos particulares, jamais houve guerras de religião entre os povos chamados idólatras? Essa paz foi um bem que nasceu de um mal, do erro mesmo: porque, reconhecendo cada nação vários deuses inferiores, achou bom que os seus vizinhos tivessem também os seus. Se excetuardes Cambises, a quem se reprova o haver matado o boi Apis, não encontramos na história profana nenhum conquistador que tenha maltratado os deuses de um povo conhecido. Os gentios não tinham nenhuma religião exclusiva, e os sacerdotes pensavam apenas em multiplicar as oferendas e os sacrifícios.
As primeiras oferendas foram frutos. Em breve foram necessários animais para a mesa dos sacerdotes; eles próprios os degolavam; tornaram-se carniceiros, e cruéis; enfim introduziram o costume horrível de sacrificar vitimas humanas e sobretudo crianças e mocinhas. Jamais os chineses nem os parsis nem os hindus foram culpados de tais abominações; mas em Hierópolis, no Egito, Segundo Porfírio, se imolaram homens.
Na Táurida sacrificavam-se os estrangeiros; felizmente os sacerdotes da Táurida não deviam ter muitas práticas. Os primeiros gregos, os cipriotas, os fenícios, os tirenses, os cartagineses tiveram essa superstição abominável. Os próprios romanos incorreram nesse crime de religião, e informa Plutarco que eles imolaram dois gregos e dois gauleses para expiar os deslizes de três vestais. Procópio, contemporâneo do rei dos francos Teodoberto, diz que estes imolaram homens quando entraram na Itália com esse príncipe. Os gauleses, os germanos, praticavam comumente esses sacrifícios afrontosos. Não se pode ler a história sem conceber grande horror ao gênero humano.
É verdade que, entre os judeus, Jefté sacrificou sua filha e Saul esteve prestes a imolar seu filho; e é verdade que aqueles que estivessem votados ao Senhor por anátema não poderiam ser resgatados como se resgatavam os animais, sendo mister que perecessem. Samuel, sacerdote de Deus, cortou em pedaços com o auxílio de um santo cutelo o rei Agague, prisioneiro de guerra a quem Saul perdoara, e Saul foi reprovado por ter observado o direito das gentes com esse rei. Mas Deus, senhor dos homens, pode tirar-lhes a vida quando quiser, como quiser e para o que quiser; e não compete aos homens colocar-se no posto de senhor da vida e da morte e usurpar os direitos do Ente Supremo.
A fim de consolar o gênero humano do quadro horrível desses piedosos sacrilégios, é importante saber que, em quase todas as nações chamadas idólatras, existia a teologia sagrada e o erro popular, o culto secreto e as cerimônias públicas, a religião dos sábios e a do vulgo. Não se ensinava senão um Deus aos iniciados nos mistérios; basta um relance de olhos sobre o hino atribuído ao velho Orfeu, que se cantava nos mistérios de Ceres Eleusina, tão célebre na Europa e na Ásia: “Contempla a natureza divina, ilumina teu espírito, governa teu coração, trilha o caminho da justiça; que o Deus do céu e da terra esteja sempre presente aos teus olhos: ele é único, existe por si mesmo; todos os seres devem-lhe a sua existência; ele os sustenta a todos; ele jamais foi visto pelos mortais e vê todas as coisas.”
Que se leia ainda este passo do filósofo Máximo de Madauro, em sua Carta a Santo Agostinho: “Qual o homem suficientemente grosseiro e estúpido para duvidar haver um Deus supremo, eterno, infinito, que nada engendrou de semelhante a si próprio e que é o pai comum de todas as coisas?”.
Há milhares de provas de que os sábios abominavam não só a idolatria mas também o politeísmo.
Epicteto, esse modelo de resignação e paciência, esse homem tão grande de uma condição tão baixa, não fala senão de um único Deus. Eis uma de suas máximas: “Deus me criou, Deus está ao redor de mim; levo-o comigo por toda parte. Poderia eu maculá-lo com pensamentos obscenos, com ações injustas, com desejos infames? Meu dever é agradecer a Deus por tudo, louvá-lo por tudo e não cessar de o bendizer senão quando cessar de viver”. Todas as idéias de Epicteto giram sobre esse princípio.
Marco Aurélio, tão grande, quiçá, sobre o trono do império romano, como Epicteto na escravidão, fala com freqüência, realmente, dos deuses, seja para se conformar à linguagem corrente, seja para exprimir seres intermediários entre o Ser Supremo e os homens; mas em quantos pontos não faz ele transparecer que apenas reconhece um Deus eterno, infinito! “Nossa alma” – diz – “é apenas uma emanação da Divindade. Meus filhos, meu corpo, meus espíritos, vêm-me de Deus.”
Os estóicos, os platônicos, admitiam uma natureza divina e universal; os epicuristas negavam-na. Os pontífices não citavam senão um único Deus nos seus mistérios. Onde, pois, os idólatras?
Aliás, é um dos grandes erros do Dictionnaire de Moréri o dizer que no tempo de Teodósio o Jovem já não existiam idólatras senão nos remotos países da Ásia e da África. Havia na Itália muitos povos gentios ainda, mesmo no sétimo século. O norte da Alemanha, desde o Weser, não era cristão ao tempo de Carlos Magno. A Polônia e todo o setentrião ficaram longo tempo depois dele no que chamamos idolatria. A metade da África, todos os remos de além Ganges, o Japão, o populacho da China, cem hordas de tártaros conservaram seu antigo culto. Apenas há na Europa alguns lapões, alguns samoiedas, alguns tártaros que perseveraram na religião de seus avitos.
Terminemos por fazer notar que, nos tempos que chamamos entre nós idade média, chamávamos ao país dos mafomistas Pagânia; tratávamos de idólatras, adoradores de imagens, um povo que as abomina. Confessemos ainda uma vez que os turcos são mais escusáveis de nos julgar idólatras quando vêem nossos altares carregados de imagens e de estátuas.
IGUALDADE

Que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende de seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra.
Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado a sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o globo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e capros monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para que servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço?
Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distância.
Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem precisões. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem – O verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência. Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua Santidade. Duro porém é servir um ao outro.
Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer seus braços à rica para ter pão. A outra vai atacá-la e é derrotada. A família servente é fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos.
Impossível, neste mundo miserável, que a sociedade humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimidos. Essas duas classes se subdividem em mil outras, essas outras em sem conto de cambiantes diferentes.
Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir toda a miséria da própria situação. Quando a sentem, porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras desfecham com a submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no estado. Digo no estado, porque o mesmo não se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre subjugará a que, embora mais rica, tiver menos coragem.
Todo homem nasce com forte inclinação para o domínio, a riqueza, os prazeres e sobretudo para a indolência. Todo homem portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer ou pelo menos só fazer coisas muito agradáveis. Vedes que com estas excelentes disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia não se invejarem.
Tal como é, impossível o gênero humano subsistir, a menos que haja infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que um homem satisfeito não deixará sua terra para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.
Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageraram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar em que a ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente: Este pais é tão mau e tão mal governado que vedamos a todo indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor: infundi em todos os vossos súditos o desejo de permanecer em vosso estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir.
Nos íntimos refolhos do coração todo homem tem direito de crer-se de todo ponto igual aos outros homens. Daí não segue dever o cozinheiro de um cardeal ordenar a seu senhor que lhe faça o jantar; pode todavia dizer: “Sou tão homem como meu amo; nasci como ele chorando; como eu ele morrerá nas mesmas angústias e com as mesmas cerimônias. Temos ambos as mesmas funções animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e eu virar cardeal e meu senhor cozinheiro, tomá-lo-ei a meu serviço”. Tudo isso é razoável e justo. Mas, enquanto o grão turco não se assenhorear de Roma, o cozinheiro precisa cumprir suas obrigações, ou toda a humanidade se perverteria.
Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo no estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em toda parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar em suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte.
INFERNO

Desde que os homens começaram a viver em sociedade devem ter percebido que não poucos criminosos escapavam á severidade das leis. Puniam-se os crimes públicos: restava estabelecer um freio para os crimes secretos. Só a religião poderia ser esse freio. Persas, caldeus, egípcios, gregos, imaginaram castigos depois da morte. De todos os povos antigos que conhecemos foram os judeus os únicos que não admitiam senão castigos temporais. Ridículo é crer ou fingir crer, baseando-se em passos obscuríssimos, que as antigas leis judaicas aceitavam a existência do inferno, no Levítico como no Decálogo, quando o autor de tais leis não diz uma única palavra que possa ter a menor relação com os castigos da vida futura. Ter-se-ia direito de dizer ao redator do Pentateuco: “Sois um homem inconseqüente, sem probidade e falto de senso, inteiramente indigno do nome de legislador que vos arrogais. Como conheceis um dogma tão altamente refreador, tão necessário ao povo como é o do inferno, e não o anunciastes expressamente? Enquanto o admitem todas as nações que vos cercam, contentai-vos em deixar adivinhar este dogma por comentaristas que virão quatro mil anos depois de vós e que torcerão vossas palavras para encontrar o que não dissestes? Se, conhecendo esse dogma, dele não fizestes a base da vossa religião, ou sois um ignorante que não sabia ser essa crença universal no Egito, Caldéia e Pérsia, ou sois um homem pessimamente avisado”.
Quando muito podiam ou autores das leis judaicas responder: “De fato somos muito ignorantes. De fato aprendemos a escrever demasiadamente tarde. De fato nosso povo era uma horda selvagem e bárbara que, confessamos, errou perto de meio século por ínvios desertos. De fato usurpamos um diminuto país pelas mais odiosas rapinas e as mais nefandas crueldades que regista a história. Não tínhamos o menor comércio com as nações policiadas: como queríeis que inventássemos – nós, os mais terrestres dos homens – um sistema totalmente espiritual?.
“Não nos servíamos da palavra correspondente a alma senão para exprimir a vida. Não conhecemos nosso Deus e seus ministros, seus anjos, senão como entes corporais: a distinção de alma e corpo, a idéia de uma vida após a morte só podem ser fruto de longa meditação e filosofia muito fina. Perguntai aos hotentotes e aos negros, que habitam um país cem vezes maior que o nosso, se conhecem a vida futura. Cremos haver feito muito persuadindo nosso povo de que Deus punia os malfeitores até a quarta geração fosse pela lepra; fosse por mortes súbitas, fosse pela perda do pouco que possuíssem”.
Replicar-se-ia a essa apologia: “Vós inventastes um sistema cujo ridículo entra pelos olhos: o malfeitor bem aboletado na vida e com a família a prosperar devia naturalmente rir-se de vós”.
Responderia o apologista da lei judaica: “Enganai-vos: para um criminoso que raciocinasse bem haveria cem que nem raciocinariam. Aquele que, cometido um crime, não se sentisse punido na própria pessoa nem na do filho, temeria pelo neto. Demais, se não tivesse hoje alguma úlcera asquerosa, a que freqüentemente estamos sujeitos, tê-la-ia ao cabo de alguns anos. Em toda família sobrevêm desgraças e fácil nos era fazê-las crer enviadas pela mão divina, vingadora das faltas secretas”.
Seria fácil retrucar a essa resposta, dizendo: “Vossa escusa é inconsistente, pois diariamente pessoas honestas perdem a saúde e os bens. E se não há família a que não aconteçam infortúnios, e se tais infortúnios são castigos de Deus, então todas as vossas famílias eram famílias de estafadores”.
O padre judeu ainda poderia retorquir. Diria existirem males próprios da natureza humana e males expressamente enviados por Deus. Mas far-se-ia ver a esse raciocinador o quanto é ridículo pensar ser a febre e o granizo ora punição divina, ora efeito natural.
Enfim, fariseus e essênios, entre os judeus, admitiram a crença de um inferno a sua moda. Esse dogma já passara de gregos a romanos, e foi perfilhado pelos cristãos.
Muitos santos da igreja não acreditaram nas penas eternas. Parecia-lhes absurdo torrar eternamente um pobre diabo só por haver roubado uma cabra. Em vão clama Virgílio no sexto canto da Eneida:

... Sedet aeternunque sedebit
infelix Theseus (42).

Em vão pretende achar-se Teseu para todo o sempre sentado numa cadeira, sendo tal postura o seu suplício. Criam outros ser Teseu um herói que não se acha no inferno, mas nos Campos Elíseos.
Não há muito um piedoso e honrado huguenote(43) pregou e escreveu que um dia os precitos teriam sua mercê, que cumpria haver proporção entre pecado e suplício e que a falta de um momento não podia merecer um castigo infinito. Os padres seus confrades depuseram esse juiz indulgente. Disse-lhe um deles: “Meu caro, não creio no inferno mais que você. Mas é bom que o creiam a sua criada, o seu alfaiate e também o seu procurador”.
INUNDAÇÃO

Terá existido um tempo em que o globo foi inteiramente inundado? Isso é fisicamente impossível.
Pode ser que, sucessivamente, o mar tenha coberto todas as terras, umas após outras; e isto não pode ter acontecido senão gradativa e lentamente, numa prodigiosa série de séculos. O mar, em quinhentos anos, retirou-se de Águas Mortas, de Frejus, de Ravena, que eram grandes portos, e deixou cerca de duas léguas de terreno em seco. Mediante essa progressão é evidente que lhe teriam sido necessários dois milhões e duzentos e cinqüenta mil anos para dar volta ao nosso planeta. Fato bem notável é que esse período se aproxima muito do que seria preciso ao eixo da terra para se levantar e coincidir com o equador: movimento muito verossímil que há cinqüenta anos começou a ventilar-se, e que requer para a sua efetuação um espaço de mais de dois milhões e trezentos mil anos.
Os leitos, as camadas de conchas descobertas por todas as costas a sessenta, a oitenta, a cem léguas mesmo do mar, constituem prova incontestável de que ele depositou pouco a pouco seus produtos marinhos sobre terrenos que eram outrora as margens do oceano; porém que a água tenha coberto inteiramente todo o globo de uma vez, é na física uma quimera absurda demonstrada como impossível pelas leis da gravidade, pelas leis dos fluidos, pela insuficiência da quantidade de água. Não que se pretenda atacar de forma alguma a grande verdade do dilúvio universal, relatada no Pentateuco: ao contrário, é um milagre, portanto é preciso crê-lo; é um milagre, portanto não pôde ter sido executado por leis físicas.
Tudo é milagre na história do dilúvio: milagre que quarenta dias de chuva tenham inundado as quatro partes do mundo e que a água tenha se elevado quinze côvados a cima de todas as mais altas montanhas; milagre que tenham existido cataratas, portas, aberturas no céu; milagre que todos os animais se tenham dirigido para a Arca, vindos de todas as partes do mundo; milagre que Noé tenha encontrado com que alimentá-los durante seis meses; milagre que todos os animais tenham cabido na Arca, com todas suas provisões; milagre que a maioria não tenha morrido; milagre que tenham encontrado com que se nutrir ao sair da Arca; milagre, ainda, mas de outra espécie, que um tal Le Pelletier (44) tenha julgado explicar como todos os animais puderam caber e nutrir-se naturalmente na Arca de Noé.
Ora, sendo a história do dilúvio a coisa mais miraculosa de que jamais se falou, insensato seria o explicá-la: trata-se de mistérios que se acreditam pela fé; e a fé consiste em crer no que a razão absolutamente não crê, o que constitui, ainda, outro milagre.
Assim a história do dilúvio universal é como a da torre de Babel, da burra de Balaão, da queda de Jericó ao som das trombetas, das águas transformadas em sangue, da passagem do Mar Vermelho e de todos os prodígios que Deus se dignou fazer em favor dos eleitos de seu povo; trata-se de profundezas que o espírito humano não pode sondar.
IRRACIONAIS

Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os irracionais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! (45)
Então aquela ave que faz seu ninho em semicírculo quando o encaixa numa parede, em quarto de círculo quando o engasta num ângulo e em círculo quando o pendura numa árvore, procede aquela ave sempre da mesma maneira? Esse cão de caça que disciplinaste não sabe mais agora do que antes de tuas lições? O canário a que ensinas uma ária, repete-a ele no mesmo instante? Não levas um tempo considerável em ensiná-lo? Não vês como ele erra e se corrige?
Será porque falo que julgas que tenho sentimento, memória, idéias? Pois bem, calo-me. Vês-me entrar em casa aflito, procurar um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembra tê-lo guardado, encontrá-lo, lê-lo com alegria. Percebes que experimentei os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória e conhecimento.
Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias.
Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrar-te suas veias mesaraicas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimento de que te gabas. Responde-me, maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os elatérios do sentimento sem objetivo algum? Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição.
Perguntam os mestres da escola o que é então a alma dos irracionais. Não entendo a pergunta. A árvore tem a faculdade de receber em suas fibras a seiva que circula, de desenvolver os botões das folhas e dos frutos: perguntar-me-eis o que é a alma da árvore? Ela recebeu estes dons. O animal foi contemplado com os dons do sentimento, da memória, de certo número de idéias. Quem criou esses dons? Quem lhes outorgou essas faculdades? Aquele que faz crescer a erva dos campos e gravitar a Terra em torno do Sol.
As almas dos brutos são formas substanciosas, disse Aristóteles e depois de Aristóteles a escola árabe, depois da escola árabe a escola angélica, depois da escola angélica a Sorbonne e depois da Sorbonne ninguém.
As almas dos brutos são materiais, proclamam outros filósofos, nem mais nem menos felizes que os primeiros. Em vão perguntou-se-lhes o que é alma material: precisam convir em que é a matéria que sente. Mas quem deu sensibilidade à matéria? Alma material... Quer dizer que é a matéria que dá sensibilidade à matéria. E não saem desse círculo.
Ouvi outra sorte de irracionais racionando sobre os irracionais: A alma dos brutos é um ser espiritual que morre com o corpo. Que prova tendes disso? Que idéia concebeis desse ser espiritual que em verdade tem sentimento, memória e sua medida de idéias e associações, mas que jamais poderá saber o que sabe uma criança de dez anos? Os maiores irracionais são os que aventaram não ser essa alma nem corpo nem espírito. Aí está um curioso sistema. Não podemos entender por espírito senão algo desconhecido e incorporal: a isto pois reduz-se o sistema desses senhores a alma dos seres brutos é uma substância nem corporal nem incorporal.
A que atribuir tantos e tão contraditórios erros? Ao vezo que sempre tiveram os homens de querer saber o que seja uma coisa antes de saber se existe. Dizemos a lingüeta, o batoque do fole, a alma do fole. Que é essa alma? Um nome que dei à válvula que, quando toco o fole, baixa e sobe para dar entrada e saída ao ar.
O fole não tem alma de espécie alguma. É simplesmente uma máquina. Quem toca, porém, o fole dos animais? Já o disse: aquele que move os astros. Tinha razão o filósofo que disse: Deus est anima brutorum. Mas devia ter ido mais longe.
JEFTÉ
Ou dos sacrifícios de sangue humano

Evidencia-se do texto do livro dos Juizes que Jefté prometeu sacrificar a primeira pessoa que saísse de sua casa para vir felicitá-lo pela sua vitória sobre os amonitas. Sua filha única se lhe apresentou; então ele lhe rasgou a roupa, imolando-a após ter-lhe permitido ir prantear nas montanhas a desdita de morrer virgem. Durante muito tempo as filhas judias celebraram essa aventura, chorando a filha de Jefté por quatro dias(46).
Em que tempo essa história foi escrita, que seja uma imitação da história grega de Agamenon e Idomenéia ou tenha sido imitada, que lhe seja anterior ou posterior, não é isso o que examino; atenho-me ao texto: Jefté votou sua filha em holocausto e cumpriu o seu voto.
Ordenava expressamente a lei judaica que se imolassem os homens votados ao Senhor. “Nenhum homem votado obterá resgate mas receberá morte sem remissão”. A Vulgata traduz: Non redimetur, sed morte morietur (47).
Foi em virtude dessa lei que Samuel cortou em pedaços o rei Agague, a quem Saul perdoara; e justamente por haver poupado Agague Saul foi admoestado pelo Senhor e perdeu o seu reino.
Eis, pois, sacrifícios de sangue humano claramente estabelecidos; não há ponto histórico melhor averiguado. Não se pode julgar de uma nação a não ser por seus arquivos e pelo que ela refere de si própria.
JOSÉ

A história de José, considerada apenas como objeto de curiosidade e literatura, é um dos monumentos mais preciosos da antigüidade que até nós chegaram. Parece ser o modelo de todos os escritores orientais; é mais tocante do que a Odisséia de Homero, pois um herói que perdoa é mais comovedor do que aquele que se vinga.
Consideramos os árabes como os primeiros autores dessas ficções engenhosas que foram traduzidas para todas as línguas; não vejo, porém, neles, aventura alguma comparável à de José. Porque ela é maravilhosa em sua quase totalidade e o fim pode fazer verter lágrimas de enternecimento. É um jovem de dezesseis anos invejado por seus irmãos; é vendido por eles a uma caravana de mercadores israelitas, conduzido ao Egito e comprado por um eunuco do rei. Esse eunuco tinha uma mulher, o que não é de admirar: o Quizlar Aga, eunuco perfeito, a quem arrancaram todo o aparelho genital, tem um serralho em Constantinopla; deixaram-lhe os olhos e as mãos e a natureza não perdeu seus direitos no seu coração. Os outros eunucos, aos quais apenas cortaram os testículos, empregam ainda, muitas vezes, o órgão principal; e Putifar, a quem José foi vendido, bem poderia pertencer ao número desses eunucos.
A mulher de Putifar apaixona-se pelo jovem José que, fiel ao seu sino e benfeitor, rejeita as carícias dessa mulher. Ela irrita-se e acusa José de pretender seduzi-la. É a história de Hipólito e Fedro, de Belerofonte e Estenobéia, de Hebro e Damasipe, de Tanis e Peribéia, de Mirtila e Hipodâmio, de Peléia e Demeneto.
Difícil é conhecer a origem de todas essas histórias, mas nos antigos autores árabes há um passo concernente à aventura de José e da mulher de Putifar que é bastante engenhoso. O autor supõe que Putifar, duvidoso entre sua mulher e José, não olhou para a túnica de José, que sua mulher rasgara, como uma prova do atentado do jovem.
Havia um menino no berço, no aposento da mulher; José disse que ela lhe rasgara e tirara a túnica na presença da criança. Putifar consultou o menino, cujo espírito era bem desenvolvido para sua idade; a criança falou a Putifar: “Verificai se a túnica está rasgada na frente ou atrás: se o estiver na frente é prova de que José quis tomar vossa mulher a força; se, pelo contrário, estiver rasgada por detrás, é prova de que vossa mulher correu em sua perseguição”. Putifar, graças ao gênio desse menino, reconheceu a inocência do seu escravo. É assim que essa aventura foi relatada no Alcorão pelo antigo autor árabe. Ele se esquece de nos dizer a quem pertencia a criança que julgou com tanto espírito; se existisse um filho da Putifar, José não teria sido o primeiro homem desejado por essa mulher.
Seja como for, José, segundo o Gênesis, é posto na prisão e ali se encontra em companhia do copeiro e do padeiro do rei do Egito. Esses dois prisioneiros sonham à noite: José explica os seus sonhos; prediz-lhes que no lapso de três dias o copeiro será agraciado e o padeiro enforcado, o que não deixou de suceder.
Dois anos após o rei do Egito sonha também; seu copeiro revela-lhe a existência de um jovem judeu, na prisão, que é o primeiro homem do mundo em compreender os sonhos; o rei faz vir à sua presença o jovem, que lhe prediz sete anos de abundância e sete de esterilidade.
Interrompamos um pouco o fio da história para verificar de que prodigiosa antigüidade é a interpretação dos sonhos. Jacó viu em sonho a escada misteriosa no alto da qual estava Deus em pessoa; aprendeu em sonho o método de multiplicar os rebanhos, método que jamais deu resultado senão para ele próprio. O próprio José soubera por um sonho que um dia haveria de dominar seus irmãos. Abimeleque, muito antes, fora advertido em sonho de que Sara era mulher de Abraão.
Voltemos a José. Logo que explicou o sonho do faraó, foi nomeado primeiro ministro. É de se duvidar que exista hoje um rei, mesmo na Ásia, capaz de conceder tão elevado cargo pela simples explicação de um sonho. O faraó deu por esposa a José uma filha de Putifar. Sabe-se que esse Putifar era sumo sacerdote de Heliópolis: não foi pois o eunuco, seu primeiro senhor; ou se o fosse, teria naturalmente outro título que não o de sumo sacerdote, e sua mulher teria sido mãe mais de uma vez.
Entretanto a miséria chegou, como o havia predito José, e este, a fim de merecer as boas graças do seu rei, obrigou todo o povo a vender suas terras ao faraó; e toda a nação se tornou escrava para conseguir trigo: reside nesse fato, aparentemente, a origem do poder despótico. É preciso notar que jamais um rei fez melhor negócio; mas também o povo não tinha motivos para bem dizer o primeiro ministro.
Enfim, o pai e os irmãos de José tiveram também necessidade de pão, pois a miséria assolava naquele tempo a terra inteira. Não vale a pena relatar aqui a forma por que José recebeu seus irmãos, como os perdoou e enriqueceu. Encontramos nessa história tudo que constitui um interessante poema épico. Exposição, articulação, reconhecimento, peripécia e maravilhoso. Nada mais característico do gênio oriental.
O que o bom Jacó, pai de José, respondeu ao faraó, deve bem comover os que sabem ler. “Qual é vossa idade?” – perguntou-lhe o rei. – “Tenho cento e trinta anos”, – respondeu o velho, – “e ainda não encontrei um dia feliz nesse curto peregrinar”.