sexta-feira, maio 26, 2006

COMO DOIS ANIMAIS - EM HOMENAGEM A ALCEU VALENÇA

Havia naquela pequena cidade, como em praticamente todas as que conheci o “doidinho” que fazia o medo da criançada e, por inofensivo o riso dos adolescentes e a “limpeza” de alguns pecados das mulheres e homens do local.
A população sustentava e protegia o seu “cãozinho” inofensivo, do frio e da fome.
Mas aquele tinha uma particularidade interessante, era muito bonito.
Tinha uns olhos azuis que fascinavam, às escondidas é claro, as mocinhas do lugar.
Os seus cabelos cacheados e ondulados também chamavam a atenção delas, mas, a debilidade mental protegia o pobre rapaz das “gulosas” moçoilas.
Menos de Marcinha, essa não, essa nunca respeitara a inocência e ingenuidade do pobrezinho.
O sexo é inerente, instintivo mesmo, e a resposta aos estímulos eram imediatas.
Nos jogos de sedução e prazer, muitas vezes jogados nas matas e nos cantos escondidos da cidade, o nosso herói era extremamente eficiente.
Pois bem, Márcia mudou-se com a família para outra cidade, e por lá ficou um bom par de anos, estudou, formou-se e, casada, voltou para a pequena cidade onde nascera.
Seu marido era homem de posses regulares, mas, que em relação aos moradores do pequeno lugarejo, poderia se considerar quase que “rico”. E, ao se preparar para a mudança, resolveu comprar uns alqueires de terra próximos a sede do município.
Nessas alturas, Márcia já tinha e esquecido das brincadeiras de adolescente e imaginava até que o doidinho já houvera morrido, também isso não tinha a menor importância; a moça crescera, amadurecera e essa página do passado já tinha sido cremada da memória, como se fora um sonho longínquo.
Reparara ao chegar à cidade, que quase tudo estava como deixara, suas amigas de juventude estavam quase todas casadas; as casas estavam nos mesmos lugares, só que mais envelhecidas, o barzinho da praça tinha fechado e, no seu lugar aparecera um trailer, onde os jovens se reuniam para namorar, conversar, essas coisas corriqueiras.
Mas uma coisa lhe chamou a atenção, na pequena cidade não havia mendigos à sua época e, agora, tinha encontrado um dormindo na rua, com aquele cheiro inerente do homem, que a água e os perfumes disfarçam.
Seu marido comentava, com tristeza, a que ponto a miséria e a bebida poderiam levar um ser humano, exposto como se fosse uma ferida aberta, uma vergonhosa chaga.
Entretanto, mal poderia imaginar que, aquele homem bêbado, de olhos baços e cabelos embranquecidos, desdentado poderia lhe ser familiar.
O tempo havia mutilado a beleza do lunático, deixando as marcas indeléveis da pobreza e dos maus tratos no pobre rapaz.
Andava, como sempre, solto nas ruas, mas, como perdera o encanto da juventude, estava cada vez mais abandonado por todos, fadado a amanhecer morto de fome ou de frio nas ruas do vilarejo.
A bebida por companheira, e para isso sempre tem alguém que colabore, tomara o lugar da comida, a tosse denunciava a tuberculose que minava aos poucos o corpo, não deixando muito, restando somente a podridão em vida, daquela vida sem brilho, sem nexo.
A vida transcorria serena e suave na cidadezinha, com seu noticiário diário dado e ampliado pelas fofoqueiras de sempre, os homens trabalhando, as crianças estudando e brincando nas ruas calçadas com “pé-de moleque”, ou ensaibradas à espera da chuva.
Mas aquele dia seria diferente dos outros.
A Igreja promovera uma quermesse para arrecadação de dinheiro para a compra de novos bancos, já que os velhos estavam destruindo-se com o tempo e os cupins.
O marido de Márcia, para orgulho dessa, era um dos mais animados arrematadores do leilão improvisado.
Todas as suas amigas tinham ficado com inveja dela quando conheceram o belo rapaz; educado e gentil. O tipo de homem que era o principal sonho de consumo das moçoilas do local
E, ainda por cima, rico, muito rico...
Nesse ínterim, eis que surge o bêbado descrito anteriormente e, para espanto de todos, segura Márcia pelo braço e a beija violentamente.
O espanto se tornou geral, já que o nosso doidinho sempre fora pacato, manso, sem sinais de agressividade ou de qualquer tara.
Márcia olhou assustada, a princípio com nojo como era de esperar; mas, de repente, como num lampejo, num átimo, reconheceu no bêbado, o amante de outrora.
E, para terror de todos, se deixou levar, com os olhos fechados e a boca entreaberta, as mãos viajando, o corpo tremendo e, numa entrega sem par, sem reparar em nada e em ninguém, para escândalo de todos, se amaram ali mesmo.
Num encontro inesquecível, a onça renascera e, junto com o cão vagabundo se “amaram na praça como os animais”.