No sertão da Solidão
Nasci no sertão de meu Deus, perto de uma curva do Rio Solidão, lá pros lados da Serra da Borborema.
Criado ouvindo o gemido da ema, o mugido do gado faminto e as lamúrias e ladainhas de minha avó.
Filho do nada e de Inalda, moça bonita que partiu para o Rio de Janeiro e morreu no cais do porto.
Assassinada por um estivador apaixonado. Enterro de pobre, vida de pobre, prostituta envelhecida precocemente.
Boi, gado, boiada, fome...
A vida me maltratando com as esporas do destino cravadas no lombo, a mão pesada do patrão, as marcas das amarras e das surras. Moleque matreiro, boi indomável, dei muitas e muitas rasteiras no corisco do azar.
Mas o pequeno boiadeiro cresceu, virou o rei da vaquejada naquelas terras, terras do Coronel Antonio Carlos, velho cruel e protetor.
Os amigos eram protegidos, mas os desafetos, bala e carabina, fuzil e estricnina, morte e sofrimento.
Varrendo todo o sertão da Bahia, égua baia, vida baia, no cocho da esperança, o sal penetra fundo e inunda de sede quem tenta a sorte.
Rei das vaquejadas, meu futuro estava traçado, montando os cavalos bravos e rompendo o sertão de Minas, lá no Jequitinhonha, acabando no mar, como o Riacho que norteava a vida, o riacho da Solidão.
Seu moço, não quero agradar a ninguém, se quiser pode ir embora que não me importo não, mas se quiser me conhecer, é melhor preparar o estômago e agüentar o tranco.
Filho de prostituta e do nada, sou víbora também, não sei suportar arreio, de tanto chicote não temo mais nada, nem a espora dos coronéis nem os anéis das Marias nem das Joanas.
Quero, antes, a liberdade do vento na cara. Essa marca nas costas lembra um A, mas não é marca do gado que não sou mais, é marca do chifre do touro bravo que montei, sangrando.
Liberdade, me falam que estás na bandeira mineira, eu acredito, pois é a minha bandeira, ainda que demorada.
De morada fiz o meu mundo nessa terra sem dono, sem rei, meu reinado.
Meu mundo é o novo, onde não existe mais gado, nem laço, sem cansaço e servidão.
Sem serventia, sem valentia, somente o vento na fuça, o vento tragando tudo. Me inundando de alegria.
Não quero ser coronel, nem quero coronel, não quero jagunço, nem gado e nem montaria.
Quero poder voltar para o Rio da Solidão, buscar minha avó, encontrar Inalda, minha mãe, atravessar o caminho do estivador no cabaret da praça Mauá, quero poder ser de novo um menino, sem marcas e sem esporas.
Quero ser o rei, reinado de menino, reisado e romaria, rota nova, vagando pelo sertão.
Ser tão e tão ser, certo no incerto da vida.
Espera sem espora, sem expor a cara pra tanto tapa. Tapados os olhos, os óleos sagrados de Deus nas costas, onde o A da cicatriz sumiu. Os calos da mão sendo substituídos pelos claros do caminho.
Viver em disparada, sobre meu cavalo correndo pelo sertão, desse reinado sem rei...
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