sábado, dezembro 02, 2006

Os três Burros

A vida de um burro é muito difícil e se presta a cada situação no mínimo delicada.
Assim não era diferente a vida de Manhoso, um burrico de idade já meio adiantada, como posso dizer, no outono de uma sofrida vida de trabalhos e de raríssimas recompensas.
Depois de tantas desditas e sofrimentos, aliviados apenas por algumas folhas de uma grama não muito degustável já que, na maioria das vezes vinha acrescida por doses generosas de agrotóxicos usados na lavoura; Manhoso trocara de dono.
O preço de um burro caiu muito nos últimos anos pois a motocicleta substituiu com vantagens o trabalho executado pelos pobres animais.
A moto, além de ser mais rápida, acaba sendo menos custosa e menos trabalhosa já que é mais fácil abastecer um tanque de gasolina do que um estômago de gramíneas, principalmente na época da seca.
Por isso estão desaparecendo os rastros deixados pelos eqüinos, tanto das patas quanto das fezes...
Como havia dito antes, por ser um burro e além de burro, um burro velho, Manhoso foi parar nas mãos de um sujeito meio estranho lá para as bandas do Limo Verde, município de Divino de São Lourenço, no interior do Espírito Santo.
João Traçado, o atual dono do burrico era conhecido por seus porres homéricos e fama de encrenqueiro, tendo tido algumas desavenças com seus vizinhos de propriedade por motivos vários. Somente João Polino, no alto de seus oitenta anos de muita experiência e de autoridade exemplar conseguia dar algum freio às loucuras de João.


Nas redondezas havia um camarada que, entre tapas, pescoções e bebedeiras, tinha um relacionamento estreito com João. Bem mais novo que este, era um rapaz até que bem apessoado mas, como bebia muito e criava tantas confusões quanto o seu companheiro, estava também à margem da pequena e conservadora sociedade do distrito.
Zequinha, como era conhecido, num dia de setembro apostou com João que sabia conduzir com maestria uma carroça.
Ao ver que este duvidava resolveu a questão de uma forma simples.
Pegou “emprestado” uma carroça de um proprietário vizinho e atrelou o pobre do Manhoso ao arremedo de carroça que havia conseguido.
Falo arremedo porque a estrutura desta estava de tal forma deturpada
que, se ninguém dissesse o que era e não reparasse nas rodas nunca imaginaria que se poderia usar aquilo como meio de transporte.

Pois bem, ao ver que o burro estava pacificamente à espera do comando, Zequinha, totalmente embriagado e incapaz de dirigir as próprias pernas, começou a puxar as rédeas de uma maneira totalmente desordenada.
Ao ver que as ordens recebidas eram totalmente incoerentes, o pobre burro que, afinal, não era tão burro como quem o tentava fazer sair do lugar, começou a trocar as patas sem saber se iria à direita, à esquerda ou em frente, ou se voltava, além de tentar decifrar alguns comandos que nunca tinha recebido na sua longa vida de cavalgadura.

Após várias tentativas, João começara a perceber que o seu amigo não entendia patavina de montaria e muito menos das artes de como se comandar uma carroça e começou a sacanear o colega, além de cobrar a aposta que tinha como ganha.

A cada cobrança Zequinha se desesperava mais e mais e com isso virava as rédeas em todas as posições possíveis e imaginárias.
Manhoso que era burro, mas nem tanto, estava exasperado com essa confusa desordem e, cansado da burrice alheia, empacou.

Com o empacamento do burro, os dois bêbados começaram a tentar achar um meio de fazer o bicho sair do lugar, já que o dono da geringonça a essa altura deveria estar começando a dar pela falta dela.

E chama pra cá e rédea pra lá e nada do burro sair do lugar, estava cansado daquela confusão toda.
Até que Zequinha apelou e começou a bater nas ancas do burro.
Cada vez que batia, mais o burro empacava, e neste vai e vem, o dono do burro deu uma pedrada com força.

Ou pela pedrada ou por ter avistado, ao longe, uma moita de capim gordura extremamente apetitosa, Manhoso resolveu sair do lugar.
E começou a correr, num galope inesperado para um velho burro.
Acontece que, ou por um ato de inteligência inesperado ou por uma destas coincidências animalescas, o destino do galope foi a propriedade do dono da carroça que, ao ver aquela cena e reconhecer a geringonça atrelada ao velho burro não pestanejou.
O tiro de garrucha atingiu um burro.
A pergunta que fica é a seguinte:
Qual dos três?