LENORA
Tem coisas que ninguém explica, e aquela era uma delas. Como é que eu tinha dormido ali?
Não me lembro de nada vezes nada. Só sei que tinha saído de casa para ir até o cinema.
Do cinema me recordo um pouco, acho que o filme, espera aí. Filme, mas qual filme?
O telefone tocara; bem, disso eu me recordo telefone maldito, sempre tocando nas horas mais estranhas e incômodas;
Ela estava dormindo do meu lado, ela e o telefone.
Mas daí em diante, o vazio, não total porque tinha o cinema e o filme.
Desses dois e mais nada.
A cabeça girava e eu estava ali.
Na casa, bem naquela casa.
O amor tinha sido antes e distante.
Naquele instante ficara o vazio.
Somente o vazio do que não fora, aborto total.
Gigantesca roda da vida dando voltas e mais voltas.
Mariana estava longe, perdida em seus casarios.
Mas retornara em Mariana, moça bonita e tresloucada.
Casamento marcado, alianças compradas e o vazio. A morte do amor, segundo ela, foi difícil entender, aceitar e nem perdoei bem ainda.
Recebi outro beijo, desejo à flor da pele e Renata, é renée, renascida, renata.
Esperanças e Renata são sinônimos.
Mas o telefonema e essa cama desarrumada me confundiram.
Nessa confusão, quem sou o que sou, e o que significa isso tudo?
Bêbado não estava, nem beber estava bebendo, somente fumava fumaça e fumaça, tosse e cansaço. Mas álcool, nada.
E como chegara até esse quarto?
De repente, o barulho do chuveiro me alertou.
Não estava sozinho e nem poderia estar, que imbecilidade!
A vaca devia estar se lavando, tomando um daqueles banhos demorados que tanto me irritavam.
Vaca, piranha, pilantra, safada. Mariana!
Mas o cheiro não era familiar, era um daqueles perfumes estranhos que não conseguia identificar.
Coisa nova, perfume novo, cama antiga, desilusões idem.
O relógio de sempre, marcava 8 horas da manhã. E o meu trabalho?
Caramba, essa vadia me fez perder a hora, tudo bem, me arrumo e vou embora.
Procuro minha roupa, cadê roupa?
No chão, por baixo da cama, sobre a poltrona da sala, nada de roupa.
Não, eu não viera nu para cá, ninguém vai ao cinema nem sai de casa nu.
Isso estava muito confuso.
O celular toca, vou atender, Renata.
Fala-me de coisas que não consegui captar direito, algo assim como espera para jantar, minha ausência, essas coisas.
Onde estivera?
Francamente respondo que não sabia, acho que tinha ido ao cinema, mas acho.
Qual filme? A resposta vaga deixou um tchau como fim de papo e, talvez, fim de romance.
Mas, fazer o quê?
O chuveiro continuava aberto, tento levantar, a cabeça roda. Ressaca sem ter bebido.
Noite comprida, dia também. As recordações giram junto com a cabeça.
Realmente Mariana tinha sido meu grande amor, mas, que vá para o inferno!
Tenho vontade de xingar a vagabunda e começo a gritar. Ou pelo menos, é o que penso fazer. A voz sai baixinha, lenta, como um gemido seco, contido.
Recordo-me das noites em vão, esperando Mariana, compensada pelas noites maravilhosas em claro.
Noites regadas a muitos e raros prazeres.
Dane-se, isso passou, acabou...
O chuveiro foi desligado.
O barulho cessa, mas o coração dispara taquicárdico.
Sabe-se lá o que se fazer nesse instante.
Sinto o gosto estranho de ferro e de estanho, trincando os dentes e arranhando a garganta.
A porta está se abrindo, Mariana, sua cadela, vou acabar contigo!
Quando a vejo nua, começo a entender o que vivera.
Quão forte fora esse sentimento. Amor regado a rancor e ódio,
Gosto violento de tristeza e desamparo misturado com o prazer inesquecível.
Mas, ao vê-la, de súbito a força perdida ressurge e, num átimo me atiro contra a porta, abro-a e saio correndo.
Na portaria do prédio, confusão e voz de prisão.
Nada entendo, não compreendo o porquê.
Homicídio. Mas de quem e como?
As mãos algemadas são arrastadas e, sem resistência, sou levado de volta ao quarto.
Agora percebo a cena terrível. O quarto todo revirado, o corpo ensangüentado na cama, a cabeça inerte pendendo para o meu lado.
Os olhos de Mariana abertos, e o vazio no olhar.
Vejo minhas mãos, agora reparo no sangue, nas marcas de sangue na minha roupa.
E aquela sensação estranha me acompanhando, rumo ao cárcere.
Onde a voz de Lenora repete num cruel solilóquio: “never more, never more”...
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