domingo, setembro 03, 2006

João Polino e os Morcegos

A noite, na roça, tem mistérios que justificam a afirmativa de Shakespeare de que “há mais mistérios entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia”.
Esse famosa frase do maior teatrólogo de todos os tempos, nunca chegou aos ouvidos de João Polino mas, o seu significado, era compreendido pelo mesmo que sempre dizia; “ nesse mato tem coelho”...
Vez em quando, na época em que começara a namorar sua amada Rita, João era obrigado a viajar por quilômetros e quilômetros a pé ou a cavalo para encontrar-se com sua amada.
A noite de Santa Martha era iluminada pelos candeeiros acesos e pelas lamparinas de querosene que deixam um certo aspecto fantasmagórico no povoado.
Bruxuleante, isso, bruxuleante, de bruxos e bruxas.
Bruxas como a Zefina Capadócia, famosa pelas curas e feitiços, desde amarrar o futuro de uma pessoa até abrir os caminhos de outra.
Dona Rita, católica fervorosa, não acreditava em nada disso mas, João Polino, que acendia uma vela pra Deus e outra pro diabo, não tinha dúvidas; a mulher era feiticeira mesmo, e das brabas...
Um dia, muito tempo depois disso, já com três filhos e esperando o quarto, dona Rita apareceu com um quadro esquisito.
Tossia e tossia, vez em quando chegava a vomitar. Aquela catarreira toda, denunciando um quadro pulmonar ligado ao excesso de poeira. Não chovia faziam alguns meses e a situação estava ficando calamitosa.
João, depois de ter ido à Igreja e pedido as bênçãos do Padre, sem resultados, resolveu, escondido de dona Rita, procurar a feiticeira.
Essa, esperta como ela só, e sabedora da baixa umidade que estava afetando o distrito e sabendo que, em situações parecidas, na capital emergente do país, Brasília, as pessoas resolviam o problema colocando uma bacia com água debaixo da cama, explicou a João o que teria que fazer para melhorar o quadro alérgico de Dona Rita.
Obviamente, não cobrava nada pelas consultas e pelos conselhos mas, como o caso era de difícil solução, explicou a João o que precisava ser feito.
Teriam que conseguir uma bacia repleta de urina de morcego para ser colocada por cima do guarda roupa , disfarçadamente, sem que dona Rita soubesse, para que funcionasse a magia.
João, entre crédulo e desesperado, já que tudo o que tinham ensinado não tinha adiantado, aceitou a sugestão e foi à caça dos morcegos.
Até que encontrou uma quantidade razoável dos mamíferos voadores, mas encher um balde de urina de morcego, convenhamos, é difícil até para o nosso engenhoso herói.
Dona Zefina, entendida dos assuntos extra terrestres e para normais, disse ao nosso amigo que, por uma módica quantia, poderia conseguir um pouco da tal urina, que era o último balde que ela possuía, essas coisas...
João, aceitou imediatamente tal oferta e retornou para casa, escondendo o pequeno balde e, sem que ninguém percebesse, escondeu-o em cima do guarda roupas, atrás de umas peças do enxoval de Maria, sua filha mais velha...
Passa um dia, passam dois, três, uma semana...
O cheiro da urina estava impregnando o quarto todo, e a casa começara a sentir os efeitos do “trabalho” ordenado pela bruxa...
Dona Rita estando nos últimos dias da gravidez, não poderia fazer nada, cabendo aos meninos, Maria e Joãozinho, o trabalho de limparem a casa...
E lava pra cá, esfrega pra lá e a catinga não desaparecia de forma alguma.
Claro que ajudada por uma frente fria que trouxe uma semana de chuvas contínuas e salvadoras, a “gripe” de dona Rita melhorou mas, a fedentina continuava, piorando a cada minuto que passava.
Até que, a vida tem suas coincidências que são, deveras, salvadoras, uma amiga de infância de dona Rita apareceu para visitar a família.
Após os preparativos e metade de um vidro de perfume gasto, a visita quis ver o enxoval de Maria.
Seu João tentou disfarçar mas dona Rita foi incisiva. Nessas alturas do campeonato, Joãozinho já tinha pego uma cadeira e estava subindo para pegar as peças do enxoval.
João Polino, preocupado, resolveu tentar impedira a ação do filho mas, era tarde demais.
Quando Joãozinho estava puxando os lençóis, fronhas e colchas, ao ouvir o berro de Seu João, assustou-se.
O balde veio junto e foi um festival de xixi caindo sobre todo mundo, principalmente sobre a visita curiosa.
Xixi não, urina fermentada e devidamente concentrada.
João Polino, mais que depressa, saiu do quarto e tentou se esconder da ira de Dona Rita; Maria, por outro lado, ao ver as peças do seu enxoval empapuçadas com aquela substância asquerosa, começou a chorar e xingar, xingar e se maldizer, se maldizer e chorar...
Joãozinho, todo molhado, com os cabelos grudados, passava a mão na cabeça e lamentava-se.
A visita foi embora jurando nunca mais voltar àquela casa de loucos...
E a morcegona, digo, Dona Zefina, pagava as contas na vendinha do seu Joaquim, feliz da vida...

Na minha escrivaninha, conto farsa

Na minha escrivaninha, conto farsa;
Parece que me entrego, de repente...
No fundo nada disso tem patente,
A vida continua mais esparsa...

Quem não tem amizade, só comparsa,
A claridade estraga um ser demente,
Não quero mais verter, dizer quem mente;
Mulheres com leveza, tal qual garça.

Minha idade negando meu fantasma,
Roncando, sibilando, fique pasma,
A vida não se ilude com promessas...

Nesse redemoinho m’afogando,
Criteriosamente suportando;
A dor que tu bem sabes, não confessas...

Arremedo

Minhas mãos, calejadas, buscam fardos.
O mar bravio, ronca nessa praia,
Um albatroz, voando vem, se espraia;
Num cântico sereno, tantos bardos...

Meus pés estão feridos pelos cardos,
Conheço na castanha, a sapucaia.
Platéia preparou sonora vaia,
Mas sei quando noturnos, gatos pardos...

Conheço nas magias, as ciganas;
Percebo quando tentas, não enganas...
Teu jogo traiçoeiro foi brinquedo...

Vencido, fiz de morto, sem saberes;
Teu garbo, mentiroso, traz quereres
Que, no fundo, parecem arremedo...

Farsa

Tenho a farsa comigo, companheira;
Me permite fingir o que não sinto,
Muitas vezes sorrindo, tanto minto.
Num teatro fingi que é verdadeira,

Felicidade falsa, escarradeira
Dessas cores vulgares, onde tinto
As mentiras sutis. Quando no absinto
Me embriago, surgindo a fera inteira

Ocultada num último soneto.
Sou servil mas, simpático, cometo
Essas atrocidades que t’escondo...

Num secreto desejo, lacerar
Ponto por ponto, nada mais deixar;
A não ser teu cadáver, decompondo...

Fortaleza

A vida maltratando, causa estrago,
Quem tentou ser audaz, não deu em nada...
As intempéries formam paliçada,
Não me restou ao menos, um afago...

Nas sutilezas bebo, me embriago,
Meus lamentos conduzem essa estrada,
Que nas luzes opacas, apagada...
Não queria saber tal gosto, amargo.

Quero vencer tais lutas, não consigo;
Conhecer contra dores, novo abrigo,
Quem sabe então, viver essa certeza

Que transforma delírio em pensamento,
Que suporta, feroz, mais um tormento,
Quem me dera criar tal fortaleza...

Desencanto

Meu pobre coração, sofre calado;
Os medos e tristezas seu enredo...
Quantas vezes, sofrendo tal degredo,
Procurou prosseguir sem ser alado...

Percebendo o bater descompassado,
Não posso conhecer o seu segredo;
Tantas vezes constrito sela o medo,
Outras tantas bateu desesperado...

Meus olhos vão cansados de chorar,
Vagueio e não consigo te encontrar.
Não posso sufocar mais o meu pranto...

Nem quero nem desejo te esquecer,
Mil vezes, estou certo, então, morrer.
Do que colecionar mais desencanto...

Dor Oculta

Essa dor que penetra sem sentido,
Nesse momento austero da saudade;
É luz negra, transforma em claridade,
O que nunca pensei ter conseguido...

Quando procuro braços, vou vencido,
Mas persisto, cegando essa verdade,
Não consigo nem quero a liberdade;
Sou pássaro, de morte, vou ferido...

Não pretendo saber de teus pecados,
Nem quero suplicar por teus recados;
Tanta miséria, fere, marca, insulta...

Tens a discórdia inata, nem percebes...
Meu amor, enfim, nunca mais concebes,
Me devorando, lenta, a dor oculta...

Companheira

Companheira, pretendo teu regaço,
Pra que a noite não faça mais surpresas;
Vida posta, banquete nessas mesas,
Onde o que mais me importa, é um pedaço

De tua boca presa no meu laço.
Não quero convergir as correntezas,
Nem tento corrigir minhas surpresas;
Apenas lutarei por teu abraço...

Converto minhas lágrimas em canto,
Precipito teu jogo num encanto;
Bem sei que nunca pensas em ser minha...

Vencido, não suporto mais derrotas,
Meu peito, naufragando essas ilhotas,
Onde te percebi, assim, sozinha...

Mistérios da morte

Quero o sabor da noite entre meus dentes,
Cortando a madrugada sem ter medo;
Meu mundo fabricando seus segredos,
Perdendo, tão somente, penitentes...

Não vejo nem sequer, cabelo e pentes,
Nem onde, por ventura, sei enredos.
Cortando minha pele nos penedos,
Que demarcaram sonhos e repentes...

Não sinto maresia nem sargaços,
Meu mar percorre insano, teus abraços,
Na certeza senil de ser mais forte.

Se temer não concebo, nem pretendo;
Passaria meu tempo todo lendo,
Somente teus mistérios, minha morte!

Útero

Quaresma, primavera, tudo muda...
Retrato amarelado sempre ri,
Emoldurando tanta dor, senti
Que nada mais terei, sequer ajuda!

Orelha carregando galho, arruda;
Sem resutados. Sorte, já perdi,
Desde o maldito instante que nasci;
Olhando criatura tão miúda,

Um anjo desses tortos, diss’amém,
Antes isso, melhor que ser ninguém!
Desde menino soube essa verdade.

Vou rastejando pelos guetos, cobra;
Comendo o que não serve nem pra sobra,
Só d’útero terei, então, saudade...

Parabólicas

Lua azul, clareando meu inverno,
Não quero ter sentido nem senão,
Quebrando essa cadeia, beijo o chão...
Nem sei mais qual o corte do meu terno.

Sabia que tentava desse inferno,
Buscar a melodia num grotão,
Mas quebrando uma corrente, digo não
Nem me importa ser velho ou ser moderno...

A tua gravidez é, na verdade,
Um resto de sincera lealdade.
Mas quem sabe de tudo bem se cala.

As vozes que transtornam, paranóicas,
A vida tem antenas parabólicas,
Permitindo teu retrato em minha sala...

Quem fora precipício

Quem fora precipício fez-se monte.
Na minha sinfonia repetida,
Amanhecer resume-se na vida;
Meu passado, futuro, velha ponte...

Coração preparado pro desmonte;
Nem ponte de safena, essa ferida
Consegue desfazer. Vive caída,
Não sabe nem sequer; origem, fonte...

Bebi desse licor do sofrimento,
Embriagado, tantas vezes, tento;
Mas a risada mostra foi em vão!

Chega de teimosia, vê se manca,
Toda essa poesia me desanca...
Enquanto não tiver o teu perdão...

Gilberto, o Caçador

Gilberto tinha arranjado uma namorada. Uma moça muito recatada, daquelas que o povo da roça diz “que é pra casar”. Menina prendada, filha de um vizinho do Seu João Polino, um homem sério, de poucas palavras, fiel a Deus, um homem honrado.
A moça, apesar de baixinha, era muito apetitosa, dona de um par de coxas roliças e curtas, com um jeitinho de cabocla solta dentro de um vestidinho deliciosamente curto.
As brincadeiras dos namorados, simples e ingênuas, levantavam, de vez em quando o vestidinho da moça, o que deixava Beto totalmente excitado, mas os conselhos de dona Rita batiam fundo, e Beto evitava provocar mais a menina, sob a pena de ser admoestado tanto pelos pais dele quanto pelo sisudo pai da menina.
Aquele domingo estava maravilhoso, um sol claro prenunciava uma noite clara de lua cheia, muito bom para a caça; esporte proibido, ainda mais naquela região próxima ao Parque do Caparaó.
Mas o que é proibido para um jovem inquieto como Gilbeto?
Nada, absolutamente nada e, temerário, combinou com um amigo ir caçar naquela noite.
O problema era a menina, acostumada ao namoro na sala de casa todos os dias, depois da missa.
Conversa vai, conversa vem, Gilberto inventou uma viagem até Ibitirama, naquela noite para justificar a sua ausência.
Depois das lágrimas mal disfarçadas da menina e das desculpas esfarrapadas, Gilberto planejou se encontrar com o amigo lá pelas sete horas da noite e se embrenhar na mata próxima aonde morava, em busca das pacas e tatus que aparecessem...
Naquela noite, lá pelas seis da tarde, Gilberto passou na casa da moça e procurando por ela, obteve a resposta de que ela, já que Beto não passaria por ali naquela noite, tinha ido visitar uma tia que morava lá pelos lados de Iúna, distante então da mata onde iria acontecer a caça.
Caçar é, com perdão dos ecologistas, um dos mais deliciosos esportes; já que faz parte do instinto básico de sobrevivência do ser humano.
A liberação de adrenalina é total, com uma sensação de prazer equiparado com a pescaria, com a conquista de um amor, como a conquista, enfim.
Gilberto, puro e instintivo, obtinha com a caça uma sensação quase orgásmica!
Noite alta, lua cheia, uma espingarda meia boca, os nossos dois heróis, a ponto de realizarem uma das maiores caçadas das suas vidas!
Já tinham matado duas pacas e um tatu, caçada inesquecível.
Mas, de repente, um barulho atrás de uma moita chamou a atenção, pelo tamanho do bicho não era coisa pouca não.
O amigo de Gilberto, Manezinho Chicote, pensou logo em tamanduá bandeira; Beto, mais audacioso, imaginou um veado campeiro.
Veado campeiro é raridade absoluta naquelas bandas, mas se contam histórias da captura de um ou dois exemplares daquele animal, provavelmente, fugidos de algum criador clandestino.
Quietos, sem fazer barulho algum, se aproximaram da moita e mandaram bala.
Se ouviu, neste instante, um grito, muito mais humano do que qualquer coisa.
E, junto com o grito, avistaram uma bunda branca, saindo correndo ensangüentada...
Logo em seguida, uma forma feminina se levantou, e Gilberto reconheceu, sob a luz da lua, aqueles cabelos lisos e aquele rosto por quem tinha se apaixonado!
Xingando a moça, Gilberto partiu atrás dela mas, propositadamente, Manezinho, sabendo da fama de violento de seu amigo, deu-lhe uma providencial rasteira.
Que esfriasse a cabeça e não fizesse besteira.
No dia seguinte, já mais calmo e desiludido, Gilberto saiu de casa para comprar um maço de cigarros na vendinha do povoado e chegou a tempo de ouvir uma conversa esclarecedora.
Doutor Marcos Valério que tinha atendido mais cedo no posto, comentava o fato com o enfermeiro que atendia à população santamartense da necessidade de se encaminhar Pedro Malta, um campeiro que trabalhava para o seu Joaquim, vereador adorado do distrito, para Guaçui.
O motivo: um tiro de espingarda que tinha atingido a bunda do pobre rapaz e parecia ter se alojado perto do quadril do moço.
Gilberto tinha quase acertado na vítima. Campeiro sim, veado não. O chifre ficara por conta dele, Beto...

João Polino e as Tanajuras

Nos idos dos anos 40, uma das maiores pragas que assolavam Santa Martha eram as saúvas.
Houve quem disse que “ou o Brasil acaba com as saúvas ou as saúvas acabam com o Brasil”. Na verdade, saúva é nome quase estranho por aquelas bandas, a danadinha é conhecida como “formiga cabeçuda” e é dessa forma mais irônica que irei tratar as famosas destruidoras.
Na época das primeiras chuvas da Primavera, principalmente após um dia muito quente, ocorre uma festa nos pequenos vilarejos Brasil a fora.
As fêmeas e os machos da espécie resolvem sair dos formigueiros para executarem o sacrossanto ato da fecundação e cumprir a norma divina do “crescei e multiplicai-vos”; nesses dias as crianças entram em total reboliço. É um tal de sair correndo atrás das fêmeas, as famosas tanajuras, e dos machos, conhecidos como bitus.
As pobres fêmeas das formigas cabeçudas, são caçadas pelos mais diversos motivos. Me recordo, até hoje, que meu pai pagava alguns trocados para quem levasse algumas guardadas num pote, é uma excelente isca para pescar.
Outras vezes, a criançada faz uma brincadeira um tanto quanto agressiva com as pobres fêmeas bundudas. Introduzindo um palito ou um pedaço de pau na “bunda” de uma tanajura alada, essa começa a bater desesperadamente suas asas, fazendo um barulho peculiar e dando voltas em torno do palito, parecendo um helicóptero tentando levantar vôo, mas com uma espécie de âncora presa na parte inferior.
As pobres tanajuras, depois de fecundadas, iam ao solo já sem as asas, se tornando presas fáceis, mesmo quando conseguiam cavar as tocas onde iriam construir um novo formigueiro.
Acontece que, por seleção natural, uma gigantesca parcela dos animais são devorados ainda no vôo pelos passarinhos ou no solo pelas esfomeadas galinhas, repasto de primeira; outras vezes, vão parar em uma farofa enriquecida com as “nádegas” fritas, servindo como um prato de raro paladar.
Conheci um colega, médico, que não perdia uma revoada de tanajuras. Fazia um dos melhores tira gostos da região!
Pois bem, a cada ano se renova a vida no mundo das formigas, com a possibilidade da criação de novos e temíveis formigueiros.
Os famintos e vegetarianos insetos, com sua capacidade de cortar qualquer tipo de folha, causam destruição ímpar nas lavouras, qualquer uma delas, não respeitando nada.
O uso de defensivos agrícolas faz com que se controle a população desse terrível animalzinho, voraz e destruidor.
Em Santa Martha não era diferente, os lavradores entrando em desespero a cada novo formigueiro criado.
Numa época em que os venenos eram de difícil acesso e de efeitos colaterais muito graves, João Polino, com seu espírito ecológico e inventivo criou uma maneira para que, sem uso de tóxicos, conseguir acabar com os famigerados formigueiros.
A fama do invento correu mundo, até chegar em Vitória, onde um engenheiro agrônomo resolveu ir a Santa Martha para que João lhe mostrasse sua engenhosa descoberta.
Encontrar João Polino não foi muito fácil, pois estávamos em plena primavera, época da reprodução dos insetos.
Mas, depois de vários quilômetros e horas de procura, o nosso engenheiro encontrou João em plena atividade, num dos sítios mais afetados pela peste.
Por mais que João tentasse disfarçar, não teve jeito, o engenheiro vendo o nosso amigo com uma caixinha na mão, perguntou o que era,
João respondeu rápido: rapé!
-Rapé? Perguntou o engenheiro.
-Sim, faz parte do meu invento.
-Como assim?
-Simples, coloque um pouco de rapé na porta do formigueiro.
-E aí?
- Coloque uma pedrinha próxima ao rapé.
-E depois?
-Seu moço, é só a formiga cheirar o rapé e espirra, e quando der o espirro, bate a cabeça na pedra e morre. Assim é que eu acabo com os formigueiros!

Cordel - A minha sina - capítulo 9 - Boi bandido e Catirina

Depois de ter escapado
Da terra do cirandar,
Eu voltei a procurar,
O meu destino marcado,
Ter meu mundo desolado,
Num momento diferente,
Voltar ser, de novo, gente;
Podendo ter paz na vida,
Buscando sem despedida,
Viver, de novo, contente...

Partindo do tal reinado,
Encontrei novo caminho
Entrando, bem de mansinho;
Num belo mundo marcado,
Pelos campos, verde prado,
De beleza assim, sem par;
Pois esse belo lugar,
De bonito dava brilho,
Não quero perder o trilho,
Mas preciso descansar!

Coisa mais sensacional
Era tal lugar bonito,
Digo, redigo e repito,
Eu nunca vi nada igual,
Parecia um festival
Dessa natureza em flor,
Nunca tanta vi tanto verdor,
Nem em sonhos ‘maginei
Pois foi lá que desbanquei
Esse peito sofredor...

Conheci moço bacana,
Um doutor muito educado,
Me falou ter procurado,
Um cabra que não engana,
Tinha muito safardana,
Enganando o pobre moço,
Eu não fiz muito alvoroço,
Mas pedi logo um emprego,
Cuido de vaca e burrego,
Carregando água de poço...

Olhei pra cara do dono,
Me disse que tava bem,
Não confiava em ninguém,
Vivendo nesse abandono,
Um rei grande no seu trono;
Mas, porém, sem confiar,
Tanto deram de enganar
Um moço tão confiado,
Entendi o seu recado,
Comecei a trabalhar...

Me falou dum boi bandido,
Que era boi dos premiado,
Um tal boi condecorado,
Boi daqueles bem vestido
Por Deus, boi escolhido,
Um campeão de rodeio,
Tinha um couro bem vermeio,
Era grande pra danar,
Era boi pra se ganhar
Bem mais de milhão e meio!

Costumado a criar gado,
Nos tempos lá das Gerais,
Pensando não querer mais,
Esse mundo disgramado
De correr lado pra lado,
Buscando por valentia,
Escapar da covardia,
Do capeta mais chifrudo,
Entro calado, vou mudo,
Viver essa regalia!

Eta mundinho dos bão,
Viver aqui na moleza,
No meio da natureza,
Sem ter preocupação,
Não quero mais nada não.
Só quero essa vida boa,
De tardinha na garoa,
De noitinha no meu quarto,
A vida enfim, me deu trato,
Fez canoeiro e canoa...

Nesse campo bem verdinho,
Sem ter seca nem ter fome,
O que se quiser, se come,
Só tá faltando carinho,
O resto vai direitinho,
Não quero sair daqui,
É, pois, tudo o que pedi,
Pensei estar realizado,
O meu coração, danado,
Resolveu se divertir...

Tinha moça bem faceira,
Filha dum sujeito bravo,
Mas sem temer por agravo,
Eu cantei a noite inteira,
Esperei, falei besteira,
Essas coisas de quem ama,
Esquentei brasa na chama,
Chamei pra dar uma volta,
Aceitou, não fez revolta,
Foi parar na minha cama!

O pai, depois do mal feito,
Reclamou com o patrão,
Esse não deu bola não,
Os dois quer tá no direito,
Agora vamos dar jeito,
Os dois precisa casar,
Aceitei sem nem pensar,
Eu casei com Catirina,
Era o nome da menina,
Mais bonita que o luar...

Passa mês três mês, um ano
Eu me sentindo feliz,
É tudo o que sempre quis,
Vivendo assim sem ter plano,
De tanto saber engano,
Desconfiava de nada,
Tudo de carta marcada,
Na jogatina da vida,
A tristeza tá perdida,
A vida dá gargalhada...

A moça então, embuchou,
A barriga tá crescida,
Minha sorte decidida,
É nesse mundo que vou,
Devagarinho chegou
O meu tempo de ser rei,
Doutro caminho não sei,
Até que enfim tenho paz,
Me esqueci de Satanás
Nem pros lados eu olhei!

Acontece que a danada,
Uma noite então me disse,
Que seu coração ouvisse,
Pro móde tá embuchada,
Sonhou nessa madrugada,
Um desejo diferente,
Vai ouvindo minha gente,
Veja só se isso tem jeito,
Com todo amor no meu peito,
Me pediu, de modo urgente,

Pra matar essa vontade,
Coisa que não tem juízo,
Me falou que era preciso,
Lhe trazer até de tarde,
Coisa de gente covarde,
Me pegou desprevenido,
Agora tô convencido,
Não tenho mesmo sorte,
Isso me cheirava a morte,
A língua do boi bandido!

Eu tentei desconversar,
Catilina então chorava
Dizia que eu não amava,
Me falando, sem parar,
Que se não fosse pegar,
A língua do desenfeliz,
Nosso filho tão feliz,
Ia ser um desgraçado,
Nesse choro, maltratado,
Minha vida por um triz...

Sem ter jeito nem escapo,
Cheguei perto desse boi,
Nesse dia então se foi,
Dei pancada até sopapo ,
Por pouco que não fui capo,
Numa chifrada mal dada,
A calça saiu rasgada,
Quase que fico capado,
Mas o boi foi deslinguado,
Sua língua ensangüentada...

Peguei, então tal troféu,
Voltei correndo pra casa,
Coração queimando brasa,
Descortinei esse véu,
Nesse inferno, cadê céu?
Reparei na gargalhada,
Eu não pensei em mais nada,
Minha vida não tem jeito,
Reparando bem direito,
No riso da desgraçada,

Eu vi que fora enganado,
A tal dessa Catirina,
Que pensei ser a menina,
Por quem fui apaixonado,
Tinha já se transformado,
De maneira diferente,
Num jeito mais repelente,
Com dois chifres apontando,
Era o diabo enganando,
Rindo seu riso contente...

Vazei então no capinado,
Deixando tudo depressa,
Não querendo nem conversa,
Com o bicho disgramado,
Sem vergonha e tão safado,
Ter me deixado sozinho,
Procurei o meu caminho,
Não posso mais ter nem paz,
Esse bicho ruim é capaz,
De me comer picadinho...

Infância

Barquinhos de papel pela enxurrada,
Numa festa sutil, criança pobre.
O medo dos fantasmas, vida cobre
O que foi quase tudo, resta nada...

A não ser os barquinhos... Em cada
Novo almoço, torcer para que sobre
Uma rapa de angu; nisso descobre
Que a tal felicidade vai cansada...

Nas janelas, bolinhas de sabão,
Pelos ares, fugiu tanto balão;
Nos papagaios, cerol não havia...

Brincadeiras; queimada, corda, pique.
Amarelinha do tempo, no repique
Dos sonhos, vai reinando a fantasia...

Algemas

Trinca ferro cantando no quintal,
A minha mãe chamando pro almoço,
Água boa, trazida desse poço,
O sol quarando roupas no varal...

Minha irmã, procurando pelo sal,
A saudade fazendo um alvoroço;
Coração mergulhando no tal fosso
Dos castelos sonhados, bem e mal!

Como pude perder minha inocência,
Minhas tardes, envoltas nos problemas,
Pai, pedirei então, Vossa clemência!

Pois voltar, se pudesse, a ser criança,
Seria libertar-me das algemas,
Presas em tais fantasmas da lembrança...

Acácias - Soneto com Estrambote

Me recordo, criança temerária;
Acácias no jardim da minha casa...
A dor dessa saudade; vem, arrasa
Quem fora, um dia, vida libertária.

A saudade voando, procelária,
Me traz a sensação cruel da brasa;
O trem da juventude, já s’atrasa,
Deixando tão somente essa cor vária.

Nas flores tão singelas dessa acácia,
Seus cachos amarelos, na fáscia
Dos sentimentos, cortam, fundo talho...

Quem soube de meus dias, já se vai.
A tarde d’existência, triste, cai...
Sobrando do meu mundo, um só retalho...

Saudades das acácias que perdi,
Quando era tão feliz, por ser criança,
As acácias não saem da lembrança;
São marcas desse tempo que vivi!

Almas Feridas

Procuro a alma das árvores, floresta;
Encontro tão somente esse lamento.
Quisera perceber um só momento,
Do duvidoso tempo que me resta...

Sentidos tão banais, a vida atesta
Que nunca mais terei um só tormento,
Nas falsas esperanças em que tento,
Viver das alegrias, finjo festa...

Nas almas dessas matas, sou machado;
Podando o que puder ter encontrado.
Na seiva que seringo, sangra a vida.

Viver? Quem dera! Sigo sem sentido,
Meu mundo vai girando, estou perdido,
Minha alma qual das árvores, ferida...

Tempo Perdido

Eu vi teu nome exposto na manchete.
Procurei encontrar um resto teu,
Um resquício qualquer, tudo morreu!
Muitas vezes, pensei, onde anda Bete?

Nas ruas, caminhando, téte e téte,
Com quem, eu sei, jamais te conheceu,
Buscava em cada rosto; um resto teu...
Agora, simplesmente, isso repete

A mesma sensação: total vazio!
Novas manchetes tolo, prenuncio;
No obituário, vais estar.

Quem fora a sensação de viva luz,
Num nada, simples nada, se reduz.
Tanto tempo perdido, a procurar!

A Música da Saudade

Ouvindo a velha música que fiz,
Homenagem vadia a quem não ama;
Esqueci que vivi sem tua chama,
Mas, falando a verdade, fui feliz.

E brincaste também, assim o quis;
Cúmplices eu sei, fomos dessa trama
Rolávamos, incautos, mesma grama,
Mas, quem dera, pudesse tentar bis.

Bisonhos tais desejos, mas sinceros.
Ouvindo a melodia dessa valsas,
Sentimentos tão falsos, soam veros...

Fustigando, por certo, tal remendo
Que usei, pra disfarçar, nas minhas calças
Dos meus medos. Sofrer, me protegendo...

Varais da Saudade

Nos varais da saudade, quarei Rita.
Pendurei no cabide, minhas dores.
Na tábua de passar, os meus amores;
No concreto da vida, foste brita...

Nas mentiras do tempo, vento agita;
Vem trazendo essas cinzas, seu odores,
Desmatando o jardim, deixei as flores;
Garimpeiro da sorte, nem pepita...

Desfraldando a bandeira do meu sonho,
Procurando a rasteira que tomei;
Esfolando o joelho, me envergonho.

Metade da metade da certeza,
Não cabe nesse mundo onde fui rei.
Meu amor, eu fiz voto de pobreza...

O que tenho com isso?

Nessas horas vagantes, sou procela,
Num sentido senil que tanto arvora...
Nessa fila de banco, uma demora
No final dessa rua, Rua Bela.

Quando fiz papagaio, da janela
Lateral do meu quarto, quis a flora...
Mas nessas tentativas, perco a hora
Da consulta marcada por Gisela.

Fingi que não queria beber cloro,
Tomar um formicida, dar risada.
Nesses vários papéis que mal decoro,

Existe verdadeiro compromisso:
O de nunca ser tudo ao menos nada...
O que tenho, pergunto então, com isso?

Nunca mais

Nunca mais poderei dizer ao vento,
Deste sonho deixado num verão;
Minha velha quimera, solidão,
Nunca me permitiu esquecimento...

Tantas vezes deixei meu sentimento
Coberto pelas luas do sertão;
Descobrindo o sentido do perdão,
Acaricio feras, sem ungüento!

Meus dentes que sangravam, já caídos,
Meu tempo que julguei ser aliado,
Deixaram os meus nervos contraídos.

Percebi, no final dessa jornada,
Que nunca medi, cada passo dado.
Minha vida, no fundo, não foi nada!

Resquícios

Quando esperei saudade encontrei riso.
Quando procurei vida, achei distância...
Quando quis a vontade, eis inconstância!
Nas vezes em que louco; fui preciso...

Quando só busquei guerra, paraíso...
Se quis maturidade, tive infância.
Nesse mar que sonhei, só sei estância...
Quanto mais me escondia; mais aviso.

A saudade brincando foi criança,
Na mortalha infinita do teu canto.
Quem sempre procurava, não avança.

Nos meus sonhos serranos, precipícios;
No que quis ser vadio, resta o pranto;
De teu amor, nada resta, nem resquícios!